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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Vontade se tornou Escrava - João Calvino



Portanto, a vontade se mantém agrilhoada por essa servidão do pecado, e não pode volver-se, muito menos aplicar-se ao bem, porque movimento desta natureza é o princípio da conversão a Deus, que nas Escrituras toda ela se atribui à graça de Deus. Por isso é que Jeremias [31.18] suplica do Senhor que converta a quem quiser converter. Donde, descrevendo no mesmo capítulo a redenção espiritual do povo fiel, o Profeta diz ser redimido pela mão de um mais forte [Jr 31.11], significando com isso de quão apertados grilhões está amarrado o pecador por todo o tempo em que, abandonado pelo Senhor, age debaixo do jugo do Diabo.

Entretanto, permanece a vontade que, com a mais acentuada inclinação, não só
propende, mas até se apressa a pecar, uma vez que o homem, ao sujeitar-se a esta necessidade, não é privado da vontade, mas da sanidade da vontade. Com efeito, nem se pronunciou inadequadamente Bernardo, que ensina subsistir em todos nós o querer – porém, querer o bem ser proveito; querer o mau, efeito. Isto é, simplesmente querer provém do homem: querer mal, da natureza corrompida; querer bem, da graça. Além disso, ao afirmar que a vontade é despojada da liberdade, necessariamente ou arrastada ou conduzida para o mal, é de admirar se a alguém a expressão pareça enganosa, visto não ter qualquer coisa de dissonante, nem ser estranha ao uso dos santos. Contudo ofende aos que não sabem distinguir entre necessidade e compulsão.

Mas, se alguém lhes pergunta: Porventura Deus não é necessariamente bom? Porventura o Diabo não é necessariamente mau? Que responderiam? Ora, a bondade de Deus é a tal ponto entrelaçada com sua divindade, que não lhe é mais necessário ser Deus do que ser bom. O Diabo, porém, em decorrência desua queda, a tal ponto se alienou da comunhão do bem, que nada pode fazer senão o mal. Porque, se algum sacrílego resmunga que a Deus se deve pouco de louvor por sua bondade, a qual ele é compelido a conservar, não se lhe dará uma resposta imediata, a saber: que ele não pode fazer o mal em razão de sua imensa bondade, não por forçosa compulsão?

Portanto, não se impede que a vontade de Deus seja livre em fazer o bem, só porque ele por necessidade opera o bem; se o Diabo, que outra coisa não pode fazer senão o mal, entretanto peca por vontade, quem por isso dirá que o homem peca menos voluntariamente, uma vez que está sujeito à necessidade de pecar? Como Agostinho proclama por toda parte esta necessidade, ainda quando era odientamente acossado pela cavilação de Celéstio, contudo nem ainda vacilou em afirmá-la nestas palavras: “Ocorreu que o homem caiu em pecado pelo uso de sua liberdade; mas já que a corrupção que se seguiu veio como castigo, ele fez da liberdade uma necessidade.” E sempre que ocorre nelemenção desta matéria, não hesita em falar nesses termos acerca da servidão necessária do pecado.

Portanto, observe-se este ponto principal de distinção: o homem, como foi corrompido pela queda, certamente peca porque quer, não contra a vontade, nem coagido; pela mui natural inclinação da mente, não por compulsão forçada pelo ardor de concupiscência pessoal, não por pressão externa; contudo, tudo faz por depravação da natureza, que não pode ser movido e impulsionado senão para o mal. Se isso é verdadeiro, então não se expressa obscuramente que de fato o homem está sujeito à necessidade de pecar.

Subscrevendo a Agostinho, assim escreve Bernardo: “Entre as criaturas, só o
homem é livre; e todavia, em intervindo o pecado, até mesmo ele sofre certa pressão, mas da vontade, não da natureza, de sorte que realmente assim não se priva da liberdade ingênita. Ora, que é da vontade, é também livre.” E pouco depois: “Desse modo, não sei por que modo depravado e estranho, mudada pelo pecado, em verdade para pior, a própria vontade para si engendra a necessidade, de modo que nem a necessidade, uma vez que provenha da vontadepode escusar a vontade, nem a vontade, uma vez que tenha sido seduzida, pode excluir a necessidade.” Pois esta necessidade é, de certa forma, produto da vontade. A seguir, diz que somos oprimidos por um jugo, contudo não outro jugo, senão certa servidão da vontade, razão por que somos miseráveis no tocante à servidão, inescusáveis no que tange à vontade; por isso a vontade, quando era livre, se fez serva do pecado. Finalmente, conclui: “E assim a alma, de certa maneira estranha e deplorável, sob esta necessidade, há um tempo, decorrente da vontade e perniciosamente livre, afirma ser não só escrava, mas também livre: escrava, em função da necessidade; livre, em função da vontade; e, que é mais estranho e mais deplorável: é culposa, por ser livre; e é escrava, por  ser culposae, em decorrência disso, é escrava, quando é livre.”

Daqui certamente os leitores reconhecem que não estou apresentando nada novo; ao contrário, apenas aquilo que, do senso comum de todos os piedosos, Agostinho publicou outrora, e por quase mil anos depois foi preservado nos claustros dos monges. Lombardo, porém, como não soubesse distinguir necessidade de compulsão, deu motivo a erro pernicioso.

Fonte: [O Calvinista]

sábado, 10 de julho de 2010

O Sentido Espiritual da Santa Ceia – João Calvino

Temos neste sacramento uma comprovação tão sólida de todas estas coisas, que devemos estar certos e seguros de que realmente nos são exibidas não diferentemente do que se o próprio Cristo presente se nos deparasse ante nossa visão e fosse tocado por nossas mãos. Ora, esta palavra não nos pode mentir nem enganar: “Tomai, comei, bebei: este é meu corpo, que é entregue por vós; este é meu sangue que é derramado para remissão dos pecados” [Mt 26.26-28].

 Ao ordenar tomar, significa que é nosso; ao mandar comer, significa que se faz uma só substância conosco; ao declarar que em relação ao corpo foi entregue por nós, em relação ao sangue foi derramado por nós, nisso ensina que ambos eram não tanto seus quanto nossos, porque a um e outro não só tomou, mas também entregou, não para seu próprioproveito, mas para nossa salvação.

E de fato deve-se observar, diligentemente, que a principal e quase total energia do sacramento se situou nestas palavras: “que é entregue por vós”, e “que é derramado por vós”. Doutra sorte, não nos seria grandemente de proveito que o corpo e osangue do Senhor sejam agora distribuídos, a menos que fossem uma vez oferecidospara nossa redenção e salvação. Assim sendo, são representados sob a forma de pãoe vinho, para que aprendamos não só que são nossos, mas também que nos foram destinados para alimento da vida espiritual.

De antemão já chamamos a atenção para o seguinte: que somos conduzidos  das coisas corpóreas que se apresentam no sacramento, por meio de certa analogia, às coisas espirituais. Assim, quando o pão nos é dado como símbolo do corpo de Cristo, imediatamente se deve imaginar esta similitude: como o pão nutre, sustenta,conserva a vida de nosso corpo, assim o corpo de Cristo é o alimento único para revigorar e vivificar a alma. Quando vemos o vinho proposto como símbolo do sangue, deve-se ter em mente quais benefícios o vinho traz ao corpo, para que reflitamos que os mesmos nos são espiritualmente conferidos pelo sangue de Cristo, a saber, alimentar, restaurar, fortalecer, alegrar. Ora, se ponderarmos bem qual o proveito que nos conferiu a entrega deste corpo sacrossanto, qual a efusão do sangue, certamente haveremos de perceber não obscuramente que, segundo analogia desse gênero, estes atributos do pão e do vinho se harmonizam perfeitamente com o que temos afirmado.

A SANTA CEIA É SELO DA PROMESSA DE QUE CRISTO NOS É O PÃO DA VIDA

Portanto, a função principal do sacramento não é simplesmente, e sem a mais elevada consideração, apresentar-nos o corpo de Cristo, mas, antes, selar e confirmar aquela promessa, promessa essa, repito, pela qual atesta ser sua carne verdadeiramente alimento; e seu sangue, verdadeiramente bebida [Jo 6.55, 56]; com os quais somos nutridos para a vida eterna [Jo 6.54]; pela qual se afirma o pão da vida; do qual quem houver comido viverá para sempre [Jo 6.48, 50]; e para que isso se faça, o sacramento nos retrocede à cruz de Cristo, onde essa promessa foi verdadeiramente realizada e em todos os aspectos, cumprida. Ora, não nos alimentamos correta e salvificamente de Cristo a não ser crucificado, quando apreendemos em vivo senso a eficácia de sua morte. Porque ele se proclamou o pão da vida, não em virtude do sacramento, como muitos viciosamente o interpretam, mas, ao contrário, porque ele nos foi dado como tal pelo Pai, e como tal se nos mostrou quando se fez participante de nossa mortalidade humana, e nos fez participantes de sua imortalidade divina; quando, oferecendo-se em sacrifício, em si levou nossa maldição, para que nos inundasse de sua bênção: quando, por sua morte, tragou e aniquilou a morte; quando, em sua ressurreição, alcançou glória e incorrupção para esta nossa carne corruptível da qual se revestira.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Novas Revelações? - João Calvino


Aqueles que negligenciam as Escrituras, e procuram revelações novas, transtornam todos os princípios da piedade.

Certos homens tolos surgiram recentemente, os quais orgulhosamente fingem ser guiados pelo Espírito e desprezam a simplicidade daqueles que ainda se apegam à “letra morta – letra que mata”. Gostaria que me dissessem qual é o espírito cujo sopro os leva a uma altura tão estonteante para que ousem menosprezar a doutrina das Escrituras como sendo infantil e desprezível.

Se responderem que é o Espírito de Cristo, quão absurda é a presunção! Eles mesmos devem reconhecer que os apóstolos e os crentes primitivos foram iluminados por aquele Espírito; no entanto, nenhum deles aprendeu dEle a desprezar a Palavra de Deus; mas todos a consideravam com a mais profunda reverência. E isto concorda com a predição de Isaías: “O meu Espírito, que está sobre Ti e as minhas palavras, que pus na tua boca, não se desviarão da tua boca nem da boca da tua posteridade, nem da boca posteridade da tua posteridade, diz o Senhor, desde agora e para todo o sempre” (Is 59.21).

O profeta predisse, portanto, que no reino de Cristo seria a mais alta felicidade da Sua Igreja ser guiada tanto pela Palavra quanto pelo Espírito de Deus. Logo, concluímos que estes zombadores ímpios separam aquilo que o profeta juntara por um vínculo sagrado. Além disso, embora Paulo tenha sido arrebatado até o terceiro céu, não cessou de fazer uso proveitoso da lei e dos profetas, e exortou a Timóteo a dar a atenção à leitura. Ademais, ele atribui honra singular às Escrituras ao dizer que são úteis: “para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17).

Certamente é o máximo da maldade e da loucura atribuir um uso rápido e temporário àquelas Escrituras que guiam os filhos de Deus até o fim da sua viagem. Aqueles fanáticos teriam bebido de um espírito diferente daquele que o Senhor prometeu aos Seus próprios discípulos? Um que não falaria de Si mesmo, mas sim relembraria o que o próprio Cristo ensinara verbalmente. Portanto, não é papel do Espírito prometido dar revelações estranhas e esquisitas, ou fabricar algum novo tipo de doutrina para nos desviar do evangelho que recebemos; pelo contrário, a função do Espírito é selar em nossos corações aquela mesma doutrina que o evangelho de Cristo nos entregou.

É claro, portanto, que os que desejam receber proveito e bênção do Espírito de Deus devem ser diligentes em ler as Escrituras e em ouvir sua voz. Assim sendo, Pedro recomenda o zelo daqueles que prestam atenção à palavra da profecia, embora os escritos dos profetas pudessem ter sido considerados ultrapassados, ‘pela nova luz do evangelho’ (2Pe 1.19). Se, por outro lado, alguém descarta a sabedoria da Palavra de Deus e impinge sobre nós uma outra doutrina, podemos suspeita-lo, com justiça, de ser vaidoso e falso. O próprio Satanás se transforma em anjo de luz; como, pois, podemos curvar-nos diante da autoridade de qualquer espírito, a não ser que seja evidenciado por algum sinal como sendo o Espírito de Deus? Este sinal se manifesta na medida em que concorda com a Palavra do Senhor. Todavia, estes infelizes deliberadamente se desviam para sua própria ruína, procurando orientação do seu próprio espírito ao invés do Espírito do Senhor.
Argumentam que é uma indignidade ao Espírito de Deus que Ele – Ele que está acima de todas as coisas – seja sujeito às Escrituras. Mas, pergunto, é um desonra ao Espírito Santo ser em todas as instâncias o que Ele é – sempre consistente, sempre imutável? Se, na realidade, procurássemos testar o Espírito por qualquer regra estabelecida pelos homens ou pelos anjos, haveria certa força nesta acusação para desonra-lo; mas se O compararmos com Ele mesmo, como se pode dizer que O estamos desonrando? A verdade é que o Espírito se alegra em ser reconhecido pela semelhança que tem com Sua própria imagem imprimida por Ele sobre as Escrituras. Ele é o Autor das Escrituras e não pode mudar; logo, sempre deve permanecer tal qual Se revelou ali.

Quanto à objeção capciosa de que estamos escravizados à letra que mata, os que empregam tal linguagem são culpados de desprezarem a Palavra de Deus. Quando Paulo disse que a letra mata (2Cor 3.6), estava se opondo a certos falsos apóstolos que ainda se apegavam alei e que teriam privado o povo do benefício da nova aliança, na qual Deus declara que colocará Sua lei nas mentes dos fiéis, e que a escreverá em seus corações. Segue-se, portanto, que a lei do Senhor é uma letra morta que mata quando ela é separada da graça de Cristo, e que simplesmente soa ao ouvido sem tocar o coração; por outro lado, se for poderosamente implantada no coração pelo Espírito e se proclama a Cristo, é a palavra da vida, a qual converte as almas dos homens e que dá sabedoria aos símplices. No mesmo capítulo, Paulo chama sua própria pregação de o ministério do Espírito, significando assim que o Espírito Santo permanece na verdade que revelou nas Escrituras, e somente revela Seu poder àqueles que tratam Sua Palavra com a reverência e honra a ela devida . E isto não está em desacordo com aquilo que eu disse antes, que a Palavra de Deus não ganha nossa confiança a não ser que seja confirmada pelo testemunho do Espírito; porque o Senhor ligou juntas, por um tipo de vínculo mútuo, a certeza da Sua Palavra e a autoridade do Seu Espírito.

Reverência verdadeira á Palavra domina nossos corações quando a luz do Espírito nos capacita a ver Deus nas Escrituras; e, por outro lado, damos boas-vindas sem temor de sermos enganados, àquele Espírito que reconhecemos pela Sua semelhança à Sua própria Palavra.


Os filhos de Deus sabem que Sua Palavra é o instrumento mediante o qual Ele comunica ao entendimento deles a luz do Seu Espírito; e não reconhecem nenhum outro espírito senão o Espírito que habitava nos apóstolos e falava através deles.