quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A Divindade de Cristo - Benjamin B. Warfield



Um escritor célebre notou que nossa segura convicção da divindade de Cristo não repousa sobre "textos-prova ou passagens, nem sobre antigos argumentos provenientes destes, mas sobre a face geral de toda manifestação de Jesus Cristo, e de toda impressão deixada por Ele sobre o mundo". Sua antítese é também absoluta e, possivelmente, trai uma desconfiança injustificada da evidência das Escrituras. Para torná-la aceitável, devemos ler antes a declaração:

"Nossa convicção da divindade de Cristo repousa não apenas em passagens das Escrituras que a afirmam, mas também sobre toda nossa impressão do mundo". Ou talvez: "Nossa convicção repousa tanto sobre as afirmações das Escrituras como sobre sua completa manifestação". Ambas as linhas de evidência são válidas e, quando misturadas, formam uma corda inquebrantável. Os textos-prova e as passagens comprovam que Jesus era considerado divino por aqueles que viviam com Ele; que Ele mesmo afirmava ser divino: era reconhecido como divino por aqueles que eram ensinados pelo Espírito; que, enfim, Ele era divino. Mas, além e acima dessa evidência bíblica, a impressão que Jesus deixou sobre o mundo dá testemunho independente de sua divindade e pode muito bem ser que, para muitas mentes, isso possa parecer a evidência mais conclusiva de todas. Certamente, é bastante convincente e impressionante.


A natureza da evidência

Um homem ao ver o rosto de seu amigo o reconhece, como reconhece sua própria letra quando se depara com ela. Pergunte-lhe como ele sabe que esse rosto é o de seu amigo, ou que essa letra é a sua, e ele pode emudecer ou, se procurar responder, balbuciar algo sem sentido. Ainda que seu reconhecimento se baseie em bases sólidas, carecerá de habilidade analítica para isolar e afirmai essas mesmas bases sólidas. Cremos em Deus, na liberdade e na imortalidade como bons fundamentos, embora não sejamos capazes de analisar estas bases de maneira satisfatória. Não existe nenhuma convicção real sem fundamento racional adequado para sua evidência. Assim, se estamos solidamente seguros da divindade de Cristo, isso será sobre bases adequadas, que apelem à razão. Mas pode muito bem ser sobre bases não analisadas, talvez não passíveis de ser analisadas, por nós, de forma a ser demonstradas na forma da lógica formal.

Não precisamos aguardar para analisar as bases de nossas convicções antes que elas operem para produzir convicções, assim como não necessitamos aguardar para analisar nossa comida antes que ela nos nutra. A convicção cristã sobre a divindade de seu Senhor não depende de sua solidez sobre a capacidade cristã de convencimento para afirmar as bases de sua convicção. A evidência que ele oferece para isto pode ser completamente inadequada, embora a evidência sobre a qual ele repouse seja absolutamente constrangedora.

O testemunho na solução

A própria abundância e persuasividade da evidência para a divindade de Cristo aumenta grandemente a dificuldade de afirmá-la adequadamente. Isto é verdadeiro até mesmo quanto à evidência escriturai, pois ela é tão precisa e definida. E verdade o que Dr. Dale observa: que os textos particulares, nos quais a divindade é definitivamente afirmada, não se referem, nem de perto, ao todo, ou ainda, nem são as provas mais impressionantes que as Escrituras fornecem da divindade de nosso Senhor. Ele compara esses textos aos cristais de sal que aparecem na areia da praia depois que a maré recua. "Esses cristais de sal não são", observa ele, "a prova mais forte, embora seja a mais aparente, de que o mar é salgado; o sal está presente na solução de cada balde de água do mar". A divindade de Cristo está na solução de cada página do Novo Testamento. Cada palavra acerca Dele, cada palavra proferida a respeito Dele, pressupõe a aceitação de que Ele é Deus. Essa é a razão pela qual a "crítica", que procura eliminar o testemunho do Novo Testamento em relação à divindade de nosso Senhor, impôs a si mesma uma tarefa sem esperança. O Novo Testamento teria de ser eliminado. Não podemos nos afastar de seu testemunho. Como a divindade de Cristo é a pressuposição de cada palavra do Novo Testamento, fica impossível selecionar palavras do Novo Testamento e buscar, com elas, construir documentos mais recentes nos quais a divindade de Cristo não seja afirmada. A convicção segura da divindade de Cristo é contemporânea ao próprio cristianismo. Jamais houve um cristianismo, nem nos tempos dos apóstolos, nem a partir daí, em que essa não fosse uma opinião primordial.


Um evangelho saturado

Warfield - Jovem
Observemos, por meio de um ou dois exemplos, quão completamente saturado está a narrativa do evangelho com a aceitação da divindade de Cristo, de maneira que ela surge de forma e em lugares inesperados.

Em três passagens de Mateus, relatando as palavras de Jesus, Ele fala de modo familiar e da maneira mais natural do mundo sobre "seus anjos" (13.41; 16.27; 24.31). Em todas elas, Ele afirma que é o "Filho do Homem"; e em todas as três existem sugestões adicionais de sua majestade. "Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ah haverá choro e ranger de dentes" (Mt 13.41,42).

Quem é esse Filho do Homem que tem anjos, por cuja instrumentalidade o juízo se executará a seu comando? "Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras" (Mt 16.27). Quem é este Filho do Homem cercado por Seus anjos e em cujas mãos estão a distribuição da vida? O Filho do Homem "enviará os seus anjos, com grande clangor de trombeta, os quais reunirão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus" (Mt 24.31). Quem é este Filho do Homem que, por sua ordem, Seus anjos selecionam os homens? Um escrutínio dessas passagens mostrará que não é um corpo particular de anjos que significa os "anjos" do Filho do Homem, mas os anjos como um corpo, quem são Dele e estão ali para servi-Lo, conforme Ele ordenar. Em uma palavra, Jesus Cristo está acima dos anjos (Mc 13.32) — como é argumentado de modo extenso e explícito no início da epístola aos Hebreus. "Ora, a qual dos anjos jamais disse: Assenta- te à minha direita..." (Hb 1.13).


O céu vem a terra

Existem três parábolas relatadas no décimo quinto capítulo de Lucas, como proferidas por nosso Senhor em Sua defesa contra os murmúrios dos fariseus, que protestavam quanto ao fato de Ele receber os pecadores e comer com eles. A essência da defesa que nosso Senhor oferece para Si mesmo é que há alegria no céu graças aos pecadores que se arrependem! Porque "no céu", diante do trono de Deus? Ele está apenas pondo o juízo do céu contra o da terra, ou apontando para sua vingança futura? De forma alguma. Ele está representando Sua ação de receber os pecadores, de procurar o perdido, como Sua própria missão, pois esta é a conduta normal do céu que se manifestou Nele. Ele é o céu que vem a terra. Sua defesa é, portanto, apenas o desvelar a natureza real da transação. Os perdidos, quando se aproximam Dele, são recebidos, porque este é o caminho do céu; e Ele não pode agir de outro modo, senão pelo modo do céu. Ele assume tacitamente a parte do bom Pastor como Sua.


A posição única

Todas as grandes designações não são tão afirmadas quanto assumidas por Ele para Si mesmo. Ele não se autodesigna profeta, embora aceite esta designação de outros. Ele coloca-se acima de todos os profetas, até mesmo de João, o maior dos profetas, como aquele para quem todos os profetas olharam. Se chama a Si mesmo de Messias, preenche esse termo dando-lhe um significado mais profundo, abrigando-se na única relação que há entre o Messias de Deus, como seu representante, e Seu Filho. Jesus não fica satisfeito em apresentar-se meramente como alguém que tem uma relação única com Deus. Ele afirma que é o recipiente da plenitude divina, o participante de tudo que Deus tem (Mt 11.28). Fala livremente de Si mesmo como o Outro de Deus — a manifestação de Deus sobre a terra, ou seja, quem quer que 0 visse, via também o Pai — e Aquele que faz a obra de Deus na terra. Ele afirma, abertamente, ter prerrogativas divinas — o conhecer o coração do homem, o perdão dos pecados, o exercício de toda autoridade no céu e na terra. Na verdade, tudo que Deus tem e é, Ele afirma ter e ser; onipotência, onisciência, perfeição pertencem tanto a um como ao outro. Ele não somente executa os atos divinos, mas Sua própria consciência se adere à consciência divina. Se Seus seguidores demoravam para reconhecer Sua divindade, isso não era devido ao fato de Ele não ser Deus, ou não manifestar suficientemente Sua divindade. Era devido a eles serem tolos e lentos para crer, no coração, naquilo que Ele deixava tão patente diante de seus olhos.


A prova maior


As Escrituras nos dão evidência suficiente, portanto, de que Cristo é Deus. Contudo, elas estão longe de nos conceder toda a evidência que temos. Há, por exemplo, a revolução que Cristo operou no mundo. Se, na verdade, se perguntasse qual é a prova mais convincente da divindade de Cristo, talvez a melhor resposta fosse o cristianismo. A nova vida que ele trouxe ao mundo; a nova criação que ele produziu por meio de Sua vida e obra no mundo; aqui estão pelo menos as credenciais mais palpáveis.

Olhemos para isso de forma objetiva. Leia-se o relato histórico do avanço e das conquistas do cristianismo nos dias da igreja primitiva e, depois, pergunte-se: Poderiam essas coisas ter sido forjadas por um poder menor do que o divino? E, a seguir, lembre- se que essas coisas não apenas foram forjadas naquele mundo pagão dois mil anos atrás, mas foram forjadas novamente em cada nova geração, pois o cristianismo reconquista o mundo para si, geração após geração. Pense em como a proclamação cristã se disseminou, perfazendo seu caminho sobre o mundo como o fogo na grama seca de uma campina. Imagine como ele, enquanto se dissemina, transformou vidas. Isso, quer em seu aspecto objetivo, quer em seu aspecto subjetivo, se fosse incrível, não teria realmente ocorrido. Charles Darwin diz: "Se um viajante, por acaso, estiver a ponto de naufragar em alguma costa desconhecida, ele orará mais piedosamente para que a lição do missionário possa ter chegado a esta distância. A lição do missionário é como uma varinha de condão". Poderia esta influência transformadora, que não foi diminuída após dois milênios, ter provindo de um mero homem? Historicamente, é impossível que o grande movimento, que chamamos cristianismo e que não esgota após todos estes anos, pudesse ter se originado de um impulso meramente humano, ou pudesse representar hoje a obra de uma força meramente humana.


A prova interna

Ou olhemos para isso de forma subjetiva. Todo cristão tem dentro de si a prova do poder transformador de Cristo e pode repetir o silogismo do homem cego: "Nisto é de estranhar que vós não saibais donde ele é, e, contudo, me abriu os olhos" (Jo 9.30). Um arrazoado eloqüente exige o seguinte: "Será que devemos confiar no toque de nossos dedos, na visão de nosso olhos, na audição de nosso ouvidos e não confiar em nossa consciência, mais profunda, de nossa mais elevada natureza — a resposta da consciência, o florescer da alegria espiritual, o brilho do amor espiritual? Negar que a experiência espiritual seja tão real quanto a experiência física é desprezar as mais nobres faculdades de nossa natureza. Isso é dizer que metade de nossa natureza diz a verdade, e que a outra, profere mentiras. A proposição de que os fatos da esfera espiritual são menos reais do que os fatos da esfera física contradiz toda filosofia." O coração transformado dos cristãos alista-se a si mesmo "na gentil temperança, nos nobres motivos, nas vidas vividas visivelmente sob o império de grandes aspirações" — essas são as provas sempre presentes da divindade da Pessoa de quem suas inspirações são retiradas.

A prova suprema para cada cristão acerca da divindade de seu Senhor é, portanto, sua própria experiência interna em relação ao poder transformador de seu Senhor sobre o coração e a vida. Como aquele que sente o calor do sol sabe que o sol existe, assim também aquele que experimentou o poder recriador do Senhor sabe que Ele é seu Senhor e Deus. Aqui está a prova, talvez possamos dizer a mais apropriada, ou, certamente, devemos dizer a mais convincente, para todo cristão da divindade de Cristo; uma prova que não pode escapar, e à qual, seja ele capaz de analisá-la, seja ele capaz de delineá-la em uma afirmação lógica ou não, ele não pode deixar de dar sua convicção sincera e irrefutável. Qualquer outro fato ele pode, ou não, ter certeza, mas ele sabe que seu Redentor vive. Porque Ele vive, nós também devemos viver — esta era a afirmação do Senhor. Porque vivemos, ele também vive — esta é a convicção que não pode ser arrancada do coração do cristão.


BENJAMIN BRECKINRIDGE WARFIELD (1851-1921) estudou no Princeton Coliege, no Seminário da Princeton e na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Warfield, ordenado em 1879, lecionou no Seminário Teológico Ocidental, Allegheny, PA, de 1878 a 1887, quando foi para o Seminário da Princeton, onde permaneceu até sua morte, em 1921. Foi seguidor do Dr. A. A. Hodge e manteve a posição conservadora calvinista desse grande teólogo, Calvino, De 1890 a 1902, editou a Presbyteriam and Re[ormed Review. Muitos de seus livros ainda são lidos hoje em dia, incluindo Biblical and Theological Studies [Estudos Bíblicos e Teológicos], Calvin and Angustine [Calvino e Agostinho], Inspiration and Authority of lhe Bible [Inspiração e Autoridade da Bíblia], The Person and Work of Christ [A Pessoa e a Obra de Crista], Perfectionism [Perfeccionismo] e Counterfeit Miracles [Milagres Forjados],

Fonte: [O Calvinismo]

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