quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O temor de Deus


Thomas Watson (1620—1686)

O temor de Deus é uma graça precursora: é a primeira semente que Deus planta no coração. Embora o crente não saiba quase nada da fé e, talvez, nada da segurança da salvação, ele não se atreve a negar, mas teme a Deus. Deus é tão grande que ele teme ofendê-lo e tão bom que teme perdê-lo. "Tu, porém, teme a Deus" [Ec 5.7].

O temor que o cristão sente não é servil, mas filial. Há uma grande diferença entre temer a Deus e ter medo de Deus. O piedoso teme a Deus, assim como um filho dedicado e amoroso teme ao pai; mas os ímpios têm medo de Deus, como o prisioneiro, do seu juiz.

Temor e amor seguem melhor quando combinados. O amor é a vela que impulsiona o mover da alma; o temor é o lastro que a estabiliza na religião.

O temor de Deus combina-se com a fé: "Pela fé, Noé... temeu" [Hb 11.7, ARC]. A fé mantém o coração alegre, conserva-o sereno, livra-o do desespero, guarda-o da presunção.

O temor de Deus combina-se com a prudência. Quem teme a Deus tem olhos de serpente e mentalidade de pomba, antevendo e evitando as rochas sobre as quais os outros se espedaçam. O temor de Deus não torna o crente covarde, mas o faz cauteloso. "O prudente vê o mal e esconde-se" [Pv 22.3].

O temor de Deus é a segurança do crente; nada pode feri-lo verdadeiramente. Roubem-lhe o dinheiro; ele leva consigo um tesouro do qual não pode ser espoliado. "O temor do SENHOR será o teu tesouro" [Is 33.6]. Prendam-no com grilhões; mas ele é livre. Matem seu corpo; ele ressuscitará. Aquele que usa o peitoral do temor de Deus, pode ser atingido, mas não traspassado.

O temor de Deus combina-se com a esperança. "Os olhos do SENHOR estão sobre os que o temem, sobre os que esperam na sua misericórdia" [Sl 33.18]. O temor está para a esperança, assim como o azeite está para a lâmpada: ele a mantém acesa. Quanto mais tememos a justiça de Deus, mais esperança temos na sua misericórdia.

A fé está de sentinela na alma, sempre na torre de vigia: o temor causa prudência. Quem anda em temor, caminha com cautela. A fé induz à oração e a oração suscita o socorro do céu.

O temor do Senhor é um grande purificador: "O temor do SENHOR é límpido" [Sl 19.9]. É inerentemente puro e de ação eficaz. O coração é o "santuário de Deus", e o temor santo varre e purifica esse templo para que não seja profanado.

O temor de Deus desperta o júbilo espiritual: estrela da manhã que prenuncia a luz solar da consolação. Caminhando-se no temor do Senhor e na consolação do Espírito Santo, Deus mistura alegria e temor, para que o temor não seja tirânico.

O temor de Deus é um antídoto contra a apostasia: "porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim" [Jr 32.40]: Amá-los-ei tanto que não me apartarei deles; temer-me-ão de tal modo que não se apartarão de mim.

O temor de Deus induz à obediência. Lutero disse: "prefiro obedecer a Deus a operar milagres". Tratando cruelmente um cristão, certo pagão perguntou-lhe com escárnio que grande milagre já fizera o seu Mestre, Jesus Cristo. O cristão respondeu-lhe: "Este: o de eu poder lhe perdoar, apesar de você me tratar assim".

O temor de Deus adoça a porção escassa: "Melhor é o pouco, havendo o temor do SENHOR" [Pv 15.16], porque é adoçado com o amor de Deus e é garantia de mais: o pouco de azeite na botija é o penhor da alegria e da bem-aventurança que a alma desfrutará no céu. As migalhas caídas que couberam a Lázaro eram mais doces do que o banquete ao homem rico. Um punhado de comida, com a bênção de Deus, é melhor do que todas as riquezas não santificadas.

Amor sincero e santo temor andam de mãos dadas; o temor procede do amor para que o favor de Deus não se perca por causa do pecado.

Publicado em Mens Reformata
Fonte: "Fear of God", Puritan Gems (1850; pp. 51-11)
Tradutor: Marcos Vasconcelos

O livre-arbítrio e Romano 8:8


Por Clóvis Gonçalves
Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Rm 8:8
Introdução
A teoria do livre arbítrio pretende provar que o homem tem capacidade inerente para crer no evangelho e aceitar a Cristo. Pressupõe que o homem está numa situação de neutralidade ou equilíbrio moral e que diante da escolha proposta no evangelho o mesmo pode optar igualmente pela salvação ou condenação. Essa teoria tem ampla aceitação no meio evangélico, enquanto que a inabilidade inata do homem é vista como uma desculpa diante de Deus. Se o homem é incapaz de crer no evangelho por si mesmo, dizem, então ele não pode ser responsabilizado pela sua incredulidade. À parte e acima dessa aparente lógica, está o que a Bíblia declara a respeito da condição do homem. E o que ela declara é que é impossível que aqueles que estão na carne agradem a Deus.
1. Agradar a Deus
Agradar é fazer a vontade de alguém, acomodando-se aos desejos e interesesses de outros. Agradar a Deus é fazer aquilo que Lhe dá prazer, que lhe traz satisfação. Isso envolve disposição para abrir mão de agradar a si mesmo. Nesse sentido “Cristo não se agradou a si mesmo” (Rm 15:3), mas sempre fazia a vontade do Pai. Para os cristãos, como soldado de Cristo, “seu objetivo é satisfazer àquele que o arregimentou” (2Tm 2:4). Além disso, agradar a Deus muitas vezes implica desagradar a outras pessoas. Paulo dizia “ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo” (Gl 1:10), uma vez que “fomos aprovados por Deus, a ponto de nos confiar Ele o evangelho, assim falamos, não para que agrademos a homens, e sim a Deus” (1Ts 2:4).
Merece especial consideração o fato de que “sem fé é impossível agradar a Deus” (11:6). Dessa forma, a primeira coisa que se exige dos que se aproximam de Deus é que creiam nele. Os que estão na incredulidade não podem agradar a Deus, não importa o quanto suas obras sejam louváveis diante dos homens, pois “tudo o que não provém de fé é pecado” (Rm 14:23). Para Deus, a primeira coisa que lhe é agradável é a fé depositada em seu Filho Jesus Cristo, mediante a pregação do evangelho. Mas, os que estão na carne não podem proporcionar-lhe este prazer, pois todos os ditames da sua natureza são no sentido de agradar a si mesmos.
2. Estar na carne
O que significa estar na carne? A expressão refere-se aos não regenerados apenas ou inclui também os chamados crentes nascidos de novo? A princípio, isso é indiferente para nossa análise, pois seja um crente ou um não nascido de novo, estando na carne não pode agradar a Deus. Mas, estar na carne é diferente de andar segundo a carne, como veremos.
A palavra carne na Bíblia tem uma ampla gama de significados, mas nas epístolas refere-se com frequência à natureza pecaminosa. Um cuidado que se deve ter é diferenciar as alusões ao corpo (σωμα) e carne (σαρξ), pois esta última é que frequentemente representa aquilo no homem que intenta agir à parte e ao contrário da vontade de Deus.
Paulo diz “eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7:18), João se refere “à concupiscência da carne” (1Jo 2:16) e Pedro às “concupiscências carnais que combatem contra a alma” (1Pe 2:11). Essa natureza pecaminosa, ou “inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (Rm 8:7). Paulo, especialmente, usa a palavra carne como termo ético significando uma pessoa vivendo separada de Deus e sob domínio do pecado.
Há, contudo, uma diferença entre andar segundo a carne e estar na carne. Embora o crente possa “andar na carne”, não “está na carne”, pois mesmo “andando na carne, não militamos segundo a carne” (2Co 10:3). O crente não deve viver em conformidade com os instintos e pensamentos que surgem de sua natureza carnal, mas ser guiado pelo Espírito Deus. Embora possamos nos deixar levar por nossa natureza carnal, não devemos andar “segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito” (Rm 8:4-5). Aqueles “que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências. Se vivemos em Espírito, andemos também em Espírito” (Gl 5:24-25).
Mas no caso do não regenerado a situação é diferente, ele “está na carne”. Eles seguem a lei de sua própria natureza que “não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (Rm 8:7). Sua natureza é hostil a Deus e àquilo que Deus exige na sua Santa Palavra. Por isso, em seu estado natural, o homem caído não tem prazer em Deus e não faz aquilo que agrada a Deus.
3. Não podem
O espírito denota poder. No Antigo Testamento o Senhor já havia dito “não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito” (Zc 4:6). Prometendo o Consolador, Jesus disse “ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder” (Lc 24:49) e “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo” (At 1:8). Por outro lado, “a carne é fraca” (Mc 14:38), identificada com enfermidade incapacitante, haja vista que “o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne” (Rm 8:3) teve que ser feito por Deus. Porque “o espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita” (Jo 6:63), só podemos agradar ao Senhor quando “servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne” (Fp 3:3).
Portanto, quem está na carne, não pode agradar a Deus. Não podemos atenuar essa declaração, fazendo parecer que é difícil ao não convertido agradar a Deus. A escritura está falando de uma impossibilidade absoluta, pois “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (Rm 8:7). O termo “dunamis” refere-se a “ser capaz, ter poder quer pela virtude da habilidade e recursos próprios de alguém, ou de um estado de mente, ou através de circunstâncias favoráveis, ou pela permissão de lei ou costume; ser apto para fazer alguma coisa” (Strong). Essa palavra é precedida pela partícula de negação absoluta “ou” e não pela partícula de negação qualificada “me”. Portanto, quem não nasceu de novo é absolutamente incapaz de agradar a Deus.
Somente pelo Espírito Santo alguém pode vir agradar a Deus. “Ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo” (1Co 12:3). Mas, ao contrário do que pensam alguns, o Espírito não é dado indiscriminadamente, pois é “o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber” (Jo 3:27). O Senhor Espírito Santo age soberanamente no coração de Seus eleitos.
Conclusão
Aceitar a Jesus é, seguramente, algo que agrada a Deus. A teoria do livre-arbítrio declara que todo homem tem a capacidade, ante a oferta do evangelho, de igualmente aceitar ou rejeitar a Cristo. Porém, a declaração de Paulo em Rm 8:8 colide frontalmente com tal teoria, reduzindo-a a pó. Todo homem natural é absolutamente incapaz, de si e por si, de aceitar a Cristo, do que concluímos que o livre-arbítrio é uma quimera, algo puramente imaginário. Por outro lado, o Espírito Santo, operando pela Palavra de Deus, é o poder vivificante, que ressuscita o homem e o leva a viver uma nova vida em Cristo. E nisto o Senhor é glorificado.
Soli Deo Gloria
Fonte: Cinco Solas
Via: [Ministério Batista Beréia]

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Princípios de Interpretação Bíblica



Por Misael Batista do Nascimento


Uma grande responsabilidade do professor cristão é interpretar corretamente a Palavra de Deus. Esta é a base da obra de ensino e pregação. De nada adianta sermos excelentes comunicadores, sabermos utilizar muito bem as modernas técnicas didáticas, se entendermos mal os ensinos bíblicos, e os passarmos adiante de forma inadequada. O objetivo dessa apostila é transmitir noções básicas de interpretação das Escrituras.

A disciplina da interpretação é chamada de exegese ou hermenêutica. Existe entre os teóricos uma certa divergência nesta questão. D. A. Carson, Ph. D. pela Universidade de Cambridge, atualmente professor de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, em seu livro A Exegese e suas Falácias, considera todo o trabalho de interpretação como exegese. Da mesma linha de pensamento é a obra de W. D. Chamberlain, Gramática Exegética do Grego Neo-testamentário, na qual o autor define exegese como "a ciência da interpretação". Gordon D. Fee e Douglas Stuart, no livro Entendes o que Lês?, fazem uma diferenciação entre a exegese e a hermenêutica. Segundo eles, exegese diz respeito ao resgate do significado do texto para os leitores originais, e abrange todas as técnicas de análise histórico-crítico-gramatical, ao passo que a hermenêutica é a arte de aplicar hoje os princípios descobertos no texto.

Minha posição quanto a essa questão é que não precisamos nos preocupar com estes pormenores acadêmicos. A título de simplificação utilizarei a expressão "Interpretação Bíblica ou IB" como significando todo o trabalho de interpretação, do início da análise gramatical até a aplicação final do texto para a nossa realidade atual.

Na verdade, todos nós praticamos a IB em nossas vidas diárias. Todos lemos a Bíblia e deciframos subjetivamente o que ela significa para nós. Segundo as doutrinas do sacerdócio universal e da obra didática do Espírito Santo, cremos que qualquer cristão pode entender o conteúdo básico das Escrituras. Rejeitamos o dogma católico de que o entendimento da Palavra de Deus só pode ser adequadamente obtido através da ingerência de um magistério da Igreja ou das proposições do Papa. Apesar disso, existem alguns princípios gerais que precisam ser conhecidos e utilizados na interpretação, principalmente pelos professores e pregadores. Nessa apostila compartilharemos os mais importantes.

Trazendo para hoje uma palavra de ontem

Um dos grandes desafios da interpretação é cultural. A Bíblia foi escrita para pessoas de outro tempo. Isso pode parecer estranho, mas vou já explicar. Quando, por exemplo, o apóstolo Paulo sentou-se para escrever a sua carta aos efésios, ele não estava pensando nos cristãos brasileiros. Sua atenção estava voltada para pessoas do século I, que viviam dentro da cultura greco-romana-judaica. O mesmo podemos dizer do autor do Apocalipse. Quando João escreveu sua obra, utilizou uma linguagem simbólica que era comum principalmente aos cristãos judeus de seu tempo. Em sua época, eram comuns os escritos apocalípticos, que buscavam transmitir mensagens de reforço na fé em linguagem cheia de imagens e significados ocultos.

Hoje, quando lemos a Epístola aos Efésios ou o Apocalipse, ficamos às vezes desnorteados com algumas expressões e, pior ainda, podemos compreendê-las mal. Daí podemos inferir que a primeira tarefa do intérprete bíblico é entender o que as Escrituras significaram para os seus primeiros destinatários. A partir desse ponto, é que podemos estabelecer qual a aplicação da mesma para hoje.

Serão válidos para hoje o ósculo santo, o véu no rosto para a oração (1Co 11:13, 16:20)? Para respondermos isso precisamos primeiro saber: "o que significava o ósculo e o véu na sociedade daquele tempo?" Somente a partir daí é que poderemos transpor essa barreira cultural, e fazer das Escrituras algo vivo para o homem do século vinte. Para isso existem vários instrumentos disponíveis já em língua portuguesa: dicionários e manuais, introduções e comentários, livros dedicados a reconstruir os tempos bíblicos e atlas que permitem-nos visualizar o arranjo político-geográfico dos tempos do Velho e Novo Testamentos. Além disso, todo esse conhecimento introdutório pode ser conseguido em um só volume. Se o professor ou pregador não tem como adquirir uma biblioteca completa, poderá economizar bastante comprando uma Bíblia de Estudo, das quais sugiro a Bíblia Anotada, de Ryrie, publicada pela Editora Mundo Cristão, ou a Bíblia Vida Nova, do Dr. Russel Shedd. Estas são, ao meu ver, as melhores Bíblias de estudo da atualidade, dentro do meio protestante.

Nove princípios muito úteis

É importante que conheçamos nove regras que devem nortear nosso trabalho de interpretação:

Oração

Todo o trabalho de interpretação deve começar com a oração. É necessário que nos cubramos com a proteção de Deus e convidemos o Espírito Santo a ser o nosso Mestre. O Espírito Santo tem uma tarefa de ensinar-nos acerca de Cristo (Jo 16:13-14).

Do mesmo modo, é ele quem nos mostra as profundas revelações de Deus: "Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito, porque o Espírito a todas as cousas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus... Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim, o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente" (1Co 2:10, 12). Em outro lugar a Escritura afirma que nosso conhecimento advém do fato de possuir uma unção do Espírito: "E vós possuís unção que vem do Santo, e todos tendes conhecimento" (1Jo 2:20).

O verdadeiro entendimento da Palavra advém, em primeiro lugar, desse contato íntimo e freqüente entre o intérprete e o Deus que inspirou as Escrituras.

Descrição ou Prescrição?

É preciso distinguir entre texto descritivo e texto prescritivo. Descritivo é o texto que descreve algo, narra um acontecimento. O fato de algo ser contado na Bíblia não significa que o mesmo é regra para hoje. Os relatos históricos, por exemplo, transmitem-nos preciosas lições espirituais. No entanto, não devemos tirar deles doutrinas absolutas para nós hoje. Só podemos tirar doutrina de história se houver concordância dos textos bíblicos doutrinários, principalmente nas epístolas do Novo Testamento. Prescritivo é o texto que traz regras, ensinamentos e mandamentos para nós hoje. Vemos nas Escrituras passagens destinadas claramente à instrução e doutrinamento.

Ir do simples ao complexo

Pergunte sempre qual o significado mais simples, mais claro, mais singelo. A Bíblia é um livro que pode ser entendido por todo cristão, do erudito até o semi-analfabeto. A verdade mais clara é sempre preferível aos posicionamentos nebulosos e "profundos" (às vezes sem fundo mesmo!).

Isso não significa que todo o conteúdo bíblico seja fácil de entender. Em algumas partes do mesmo, precisaremos de auxílio adicional, e aqui entra a contribuição das boas introduções, manuais e comentários. E não apenas isso. Algumas passagens, ficarão simplesmente sem interpretação, por completa falta de informação. Mesmo o maior estudioso não sabe tudo sobre a Bíblia. Por isso mesmo devemos fugir de interpretações que exijam verdadeiras ginásticas mentais. Só devemos ir ao complexo se houver indício de revelação progressiva.

Cuidado com os textos "misteriosos"

Não dê atenção a textos obscuros. Pode parecer estranho, mas esse é um princípio que eu considero dos mais importantes. Alguns indivíduos tem o prazer em escarafunchar curiosidades inócuas tais como quem era o jovem nu do final do Evangelho de Marcos (Mc 14:51-52), os detalhes do batismo pelos mortos citados por Paulo em 1Co 15:29, acerca da pregação de Cristo aos espíritos em prisão, citada em 1Pe 3:18-20. Assim, perde-se tempo analisando detalhes irrelevantes. Essas questões podem parecer um "prato cheio" para os eruditos e técnicos textuais do Novo Testamento, mas, na maioria das vezes, dizem pouco ao cristão comum.

Partamos do princípio que todas as principais doutrinas e ensinamentos para a nossa vida prática estão expostos de modo claro na Bíblia. Os textos complicados, porquanto bíblicos, e por isso, valiosos, não são fundamentais para a nossa fé.

Ninguém vai deixar de ser salvo, por exemplo, se desconhecer o significado do número da besta, 666, de Ap 13. O trabalho do intérprete é aprender os ensinos claros e passá-los adiante.

Não devemos buscar decifrar mistérios, especializarmo-nos em uma espécie de esoterismo cristão. Tal insistência produz obsessão por posicionamentos obtusos, que não são saudáveis para a Igreja de Cristo.

Considere a revelação progressiva

A terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, o grão cheio na espiga — Mc 4:28

Algumas verdades foram reveladas em semente no Velho Testamento, e só no Novo Testamento encontramos sua plena expressão, como por exemplo o ministério de Cristo, a Igreja, a nova dimensão da guarda do sábado, a situação pós-morte, etc.

Deve-se considerar a revelação progressiva no processo de interpretação. Alguém pode ler Ecl 9:5 e concluir uma doutrina errônea, afirmando que "os mortos não sabem cousa nenhuma". Os adventistas, por exemplo, fazem isso, ensinando que depois da morte a pessoa fica inconsciente, no túmulo, aguardando o dia da ressurreição. Essa é uma interpretação que desconsidera claramente a revelação progressiva. O texto de Eclesiastes não pode ser interpretado sem considerarmos as passagens do Novo Testamento que falam sobre o estado intermediário, quando estaremos com Cristo no céu aguardando a ressurreição. Nesse caso, houve uma progressão da revelação.

Compare Escritura com Escritura

O melhor comentário sobre a Bíblia é a própria Bíblia. Compare os princípios encontrados com o restante das Escrituras. Se houver reafirmação da verdade, principalmente no Novo Testamento, devemos ensiná-la com convicção. Essa regra é chamada pelos intérpretes de "analogia das Escrituras", e, bem utilizada, evita uma série de erros grosseiros de interpretação.

O intérprete realiza o seu trabalho convicto de que a Escritura não se contradiz. Algumas verdades são difíceis de conciliar, mas isso não significa que sejam excludentes.

Um exemplo disso é a questão da responsabilidade humana e da soberania divina. Alguns afirmam que Deus é quem decreta e dirige todas as coisas. Ele domina sobre tudo, e todas as coisas ocorrem segundo o plano predeterminado pelo Senhor (Sl 139:16; Pv 21:1; Is 46:9-11; Mt 10:29; At 2:23, 4:24, 28, 13:48; Rm 8:28-30, 9:8-24; Ef 1:5, 11; I Ts 5:9; 1Pe 5:11; Ap 1:6). Outros afirmam que, na verdade, o homem é responsável diante de Deus por seus atos. A existência do mal no mundo, e as conseqüências ruins provenientes do pecado são responsabilidade dos anjos e dos homens e não de Deus (Ez 18:29). Os homens são responsáveis diante de Deus pela sua rejeição ao Evangelho de Cristo, e quem não crer no Filho de Deus trará sobre si a justa condenação (Jo 5:24, 40, 6:29, 47-51).

Os cristãos bíblicos aceitam ambos os ensinos como expressão da mais pura verdade de Deus. Aqui encontramos uma antinomia. Antinomia, conforme o Dicionário Aurélio, é o "conflito entre duas afirmações demonstradas ou refutadas aparentemente com igual rigor". O problema, nas antinomias, não está na Bíblia, e sim na finitude de nossa compreensão. O fato de não entendermos alguma coisa não significa que ela esteja errada. O professor ou pregador deve ensinar tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana. Algumas respostas a tais questões só nos serão fornecidas na eternidade.

Cuidado com as "novas revelações"

Quando falamos de interpretação, o Espírito Santo não concede nova revelação, e sim iluminação. Não há nova verdade a ser acrescentada sobre o texto bíblico. Há nova iluminação, ou seja, são-nos mostrados novos aspectos da verdade que são relevantes para a nossa situação atual. A verdade é apenas uma. As aplicações dessa verdade é que são diversas. Somos incumbidos de entender a verdade e, sob a unção do Espírito de Cristo aplicá-la. Não fomos chamados para descobrir novas coisas, mas para ensinar as velhas e maravilhosas verdades de forma nova, pois elas são sempre necessárias em nossa geração.

Observe o Contexto

Conforme W. D. Chamberlain, "para interpretar contextualmente, há de se levar em conta o conteúdo geral de todo o documento, se ele é um discurso unificado. Então, o matiz de pensamento que circunscreve a passagem, pois que mui freqüentemente afeta ele o sentido dos termos a interpretar-se". Em algumas ocasiões, como por exemplo, numa interpretação de uma epístola, o seu "teor geral dita o sentido real da passagem" .

Quando desconsideramos o contexto, estamos sujeitos a errar a nossa interpretação. Um exemplo clássico é Ap 3:20: "Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo". Tenho ouvido muitos pregadores que usam a passagem como uma espécie de apelo evangelístico. O convite do Senhor, no entanto, neste caso, não é dirigido aos pecadores para que eles se arrependam e creiam no evangelho. O convite de Cristo aqui dirige-se aos crentes orgulhosos. O versículo em questão faz parte da carta de Jesus à Igreja de Laodicéia (Ap 3:14). Um modo eficaz de olharmos os textos contextualmente é os observarmos em blocos redacionais, conforme o exemplo abaixo:

Evangelho de João.

21 Capítulos, divididos em duas partes:

- Caps. 1-13: O Livro dos Sinais.

- Caps. 14-21: O Livro da Glória.

Objetivo do livro: Gerar fé nos leitores, de que Jesus Cristo é o Filho de Deus (Jo 20:31).

Seção é uma divisão maior do livro. No caso do Ev. de João, podemos afirmar que existem duas grandes seções: Sinais e Glória.

Capítulo é uma unidade menor dentro de uma seção. É interessante dividirmos os parágrafos dentro dos capítulos para entendermos melhor o texto.

Perícope ou texto analisado é a unidade menor dentro de um capítulo. Pode abranger um ou mais parágrafos. O texto estudado pode abranger apenas parte de um parágrafo, ou mesmo um só versículo. É importante estabelecer a relação deste texto com o capítulo, com a seção e com o restante do livro. Essa análise ampla permite uma interpretação harmoniosa e equilibrada.

A interpretação deve levar em conta toda essa estrutura textual. Chamamos de contexto imediato tudo aquilo que está próximo ao texto estudado (parágrafo e capítulo).

Chamamos de contexto remoto tudo aquilo que está distante, mas ao mesmo tempo abrange o texto estudado (seção— divisões maiores da obra, e o livro como um todo).

Devemos sempre perguntar ao texto: qual o contexto próximo? O parágrafo está tratando de que tema? E o capítulo? E a seção? Aqui estabeleceremos uma relação entre os elementos textuais, e estaremos mais aptos a discernir o significado da passagem. Todo texto deve ser interpretado dentro do seu contexto. Como diz um ditado da IB, "texto tirado de contexto é pretexto". Muitos usam textos deslocados para provar as suas doutrinas preferidas. Não caiamos nesse ardil!

Interpretação alegórica ou literal?

Ao interpretarmos um texto, fujamos da interpretação alegórica. O texto normalmente significa aquilo que está escrito mesmo. Em ocasiões iremos nos defrontar com figuras de linguagem. Cristo diz, por exemplo, que ele é "a porta" (Jo 10:7). Nesse caso, o bom senso nos diz que cabe aqui uma interpretação simbólica. Em outras situações, porém, devemos cuidar para não alegorizar aquilo que é literal.

Ouvi certa vez uma pregação sobre o casamento de Isaque relatado em Gn 24. O pregador disse que o servo de Abraão era um "tipo" do Espírito Santo, e que Rebeca é um símbolo da Igreja. Se formos utilizar tais artifícios em nossa interpretação, poderemos transformar o texto bíblico naquilo que quisermos. Devemos levar a Bíblia a sério. Os casos onde não estiver clara uma figura de linguagem, ou onde o estilo de literatura não for claramente figurativo, tais como nos Salmos e no Apocalipse, devemos sempre interpretar literalmente. O bom senso e a liderança do Espírito Santo nos garantirão bom resultado nessa empreitada.

Andando de bicicleta nas ruas do Antigo e Novo Testamentos

Sei que, inicialmente, a observação dos nove princípios acima poderá parecer um pouco complicada. Alguns, vendo a grandeza da tarefa, poderão até pensar em desistir. Quero incentivá-los a perseverarem. Deus recompensa nosso esforço de buscarmos entender melhor a sua Palavra. A situação assemelha-se a andar de bicicleta. Nas primeiras vezes que tentamos tivemos dificuldades. Alguém nos empurrava e, mesmo com rodinhas, levávamos uns bons tombos! Com o tempo, porém, fomos adquirindo confiança e coordenação. Começamos a pedalar com firmeza e ganhamos equilíbrio. Não precisamos mais de quem nos empurrasse. Depois, foram retiradas as rodinhas, e hoje passeamos prazeirosamente com nossas bicicletas. Sentamos no selim, e nem notamos que estamos tendo de coordenar um monte de movimentos ao mesmo tempo. O mesmo ocorre com a IB. Depois de certo tempo, adquiriremos o hábito de caminhar seguindo a trilha destas nove regrinhas, e exploraremos as ruas do Antigo e Novo Testamentos. Faremos isso prazerosamente, sem tantas dificuldades. Aqui, é claro, termina a similaridade com o treinamento na bicicleta. No caso da IB, jamais poderemos dispensar a ajuda de nosso treinador: o Espírito Santo. Ele sempre estará conosco neste caminho, e nosso destino será a terra da boa doutrina, de onde poderemos encontrar ao Senhor Jesus Cristo, e desfrutar por ele do gostoso fruto da árvore da vida. A Ele toda honra e toda glória.


Bibliografia recomendada:

- Carson, D. A. (1992). A exegese e suas falácias: Perigos na interpretação da Bíblia. São Paulo: Vida Nova.
- Chamberlain, W. D. (1989). Gramática exegética do grego neo-testamentário. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana.
- Fee, Gordon D. e STUART, Douglas. (1984). Entendes o que lês?: Um guia para entender a Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova.
- Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. (s.data). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
- Zuck, Roy B. (1994). A interpretação bíblica: Meios de descobrir a verdade da Bíblia. São Paulo: Vida Nova.

Fonte: [ Monergismo ]

Via: [Bereianos]
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sábado, 8 de janeiro de 2011

[PVE] Qual a interpretação correta do livro de Apocalipse?




Antes de falar nisto, deixe-me fazer uma consideração sobre parábolas e linguagem simbólica.
Durante o seu ministério, Jesus também falava muito por meio de símbolos – no que chamamos de parábolas. Uma explicação muito comum, mas equivocada sobre o uso de parábolas no ministério de Jesus, era que as parábolas supostamente facilitariam o entendimento da população que ouvia Jesus, já que transmitiam os ensinamentos por meio de comparações baseadas na vida comum de seus ouvintes. Tal explicação é incoerente com o ensino do próprio Jesus sobre o tema:
E chegando-se a ele os discípulos, perguntaram-lhe: Por que lhes falas por parábolas?Respondeu-lhes Jesus: Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado; pois ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não vêem; e ouvindo, não ouvem nem entendem.”  (Mt 13:10-13)
Jesus não usava parábolas pra facilitar a compreensão das verdades espirituais, mas para dificultar. Para compreender uma parábola, era preciso muita reflexão. Uma pessoa que verdadeiramente buscasse a Deus iria pensar, refletir, buscar e perguntar até que ele consiga encontrar o real sentido do que Cristo ensinava. Tendo encontrado o significado, ele irá refletir sobre o ele até que ele consiga compreender o máximo possível sobre Deus mediante a nova informação adquirida. O que Jesus disse é que ele queria que o sentido da parábola tivesse aberto somente para aqueles que realmente tivessem o desejo de compreendê-las. Isso requer dedicação e esforço.
É devida justamente a sua natureza simbólica que não existe unanimidade na interpretação do Apocalipse, ainda que em meio aos melhores estudiosos. A dificuldade em compreender este livro é que a sua mensagem é quase inteiramente transmitida em símbolos. O famoso escritor Ambrose Bierce comentou com uma dose de humor sobre este livro, dizendo que João escondeu tudo o que sabia e que quem nos dá a revelação são comentaristas que nada sabem. Não é a toa que um conhecido costuma dizer que “escatologia é terra de ninguém”.
Diferentes linhas de interpretação têm sido defendidas por grandes nomes no Cristianismo por toda a história. O aconselhável é que você se informe sobre as principais correntes de interpretação até chegar a uma conclusão sobre o que acredita ser o mais bíblico. Por que não começar sua pesquisa com os mil anos de Apocalipse 20? Sobre isto, existem três correntes principais de interpretação:
1) Pré-Milenismo: É a corrente que defende que a Segunda Vinda de Jesus acontecerá antes (pré) do período de mil anos de Apocalipse 20. Acreditam que serão mil anos literais e será caracterizado por grande paz e prosperidade na terra devido à presença física de Jesus reinando. Alguns defensores notáveis do Pré-Milenismo: Justino Mártir, Irineu, Charles Spurgeon, John Darby, John McArthur, John Piper, Mark Driscoll, Billy Graham.
2) Amilenismo: É a corrente que defende que os mil anos de Apocalipse 20 não devem ser entendidos literalmente, mas é uma linguagem figurada para falar de toda a História da Igreja da Primeira até a Segunda Vinda de Cristo. Defendem que não devemos esperar nenhum período de paz ou prosperidade terrena como fruto desse Reino, mas que o Reino de Cristo é completamente espiritual, no coração dos cristãos. Alguns defensores notáveis do Amilenismo: Agostinho, Martinho Lutero, Heinrich Bullinger, Abraham Kuyper, Cornelius Van Til, Herman Hanko, R.C Sproul.
3) Pós-Milenismo: É a corrente que defende que os mil anos de Apocalipse 20 não devem ser entendidos literalmente, é uma linguagem figurada para falar de toda a História da Igreja, mas que acreditam que o que devemos esperar para a História da Igreja é a evangelização do mundo inteiro e o completo desenvolvimento social, econômico e cultural do mundo como fruto dessa evangelização. Acreditam que a Grande Comissão será bem sucedida e que a maior parte das pessoas do mundo será convertida. Alguns defensores notáveis do pós-milenismo: Atanásio, João Calvino, John Knox, a maioria dos puritanos, Jonathan Edwards, Kenneth Gentry, Gary DeMar, Gary North, David Chilton.
Não estamos afirmando que todas essas interpretações sejam igualmente corretas, pois a Bíblia sendo perfeita não poderia estar falando mais de uma coisa sobre o mesmo assunto. Estamos falando somente que não há consenso sobre isso; então, o melhor a fazer é estudar todas as opiniões e estudar bastante as Escrituras, com muita oração, para chegar a uma conclusão pessoal sobre qual sistema parece ser o mais bíblico. Para isso, não esqueça que, como a Confissão de Westminster comenta com muita razão, “na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos…” (I, 7).
Por: Frank Brito Websitevoltemosaoevangelho.com
Permissões: Você está autorizado e incentivado a reproduzir e distribuir este material em qualquer formato, desde que adicione as informações supracitadas, não altere o conteúdo original e não o utilize para fins comerciais.

Fonte: [Voltemos ao Evangelho]

sábado, 1 de janeiro de 2011

O caminho de Lutero ao Paraíso - John Piper



















Para Martinho Lutero, o triunfo da graça não ocorreu em um jardim, mas em um escritório. E a vitória não ocorreu principalmente sobre a lascívia, mas sobre o temor da ira de Deus. "Se eu pudesse acreditar que Deus não estava irado comigo, pularia de alegria". Ele podia ter falado "soberana alegria". Mas não conseguia acreditar nisso. E, em sua vida, o maior obstáculo não era uma concubina em Milão, na Itália, mas um texto bíblico em Wittenberg, na Alemanha. "Uma única palavra em [Rm 1.17], 'Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho'(...) estava me detendo. Pois eu odiava aquela, palavra, 'a justiça de Deus"'. Ele aprendera que a "justiça de Deus" significava a justiça "com a qual Deus é justo e pune o pecador injusto". ' Isso não concedia nenhum alívio nem era evangelho. Enquanto Agostinho"arrancava [seus] cabelos e batia na testa com [seus] punhos cerrados" em desespero por causa da sua escravidão à paixão sexual, Lutero "se irava com uma consciência aterradora e perturbada... [e] persistentemente golpeava Paulo naquele lugar [em Rm 1.17], querendo entender ardentemente o que o apóstolo queria dizer".

Sua vitória aconteceu em 1518, não como acontecera com Agostinho, com o repentino cantar de uma criança, "Tome e leia", mas pelo estudo inexorável do contexto histórico-gramatical de Romanos 1.17. Esse estudo sagrado provou ser uma ferramenta preciosa da graça. "Finalmente, pela misericórdia de Deus, meditando de dia e de noite, dei atenção ao contexto das palavras, a saber: 'O justo viverá pela fé.' Então comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por um dom de Deus, em outras palavras, pela fé. Aqui senti como se tivesse nascido de novo e entrado no paraíso por portões abertos". Foi essa a alegria que transformou o mundo.

Justificação pela fé somente, sem as obras da lei, foi o triunfo da graça na vida de Martinho Lutero. Ele realmente ficou, por assim dizer, de pernas para o ar de alegria, e, juntamente com ele, o mundo inteiro foi revirado. Mas, com o passar dos anos, Lutero se convenceu cada vez mais de que havia algo mais profundo sob essa doutrina e o conflito dela com o aspecto meritório das indulgências e o purgatório. Mas, ao final, o que produziu a defesa mais ardente que Lutero fez da graça onipotente de Deus não foi a venda de indulgências de Johann Tetzel, nem a promoção da idéia do purgatório de Johann Eck.O que provocou Lutero acima de tudo foi a defesa do livre arbítrio feita por Erasmo de Roterdã.

Erasmo foi para Lutero o que Pelágio fora paraAgostinho.Martinho Lutero admitiu que Erasmo, mais do que qualquer outro oponente, havia percebido que a impotência do homem diante de Deus, e não a controvérsia sobre as indulgências e o purgatório, era a questão principal da fé cristã. Lutero escreveu seu livro A. escravidão da vontade, publicado em 1525, em resposta ao livro de Erasmo, A. liberdade da vontade. Para Lutero, esse livro que escrevera era o seu "melhor livro teológico e o único digno de ser publicado". E isso porque, no centro da teologia de Lutero, encontrava-se uma dependência completa da liberdade da graça onipotente de Deus para resgatar homens impotentes da escravidão que o livre arbítrio impõe. "O homem, por si só, não tem a capacidade de purificar seu próprio coração e produzir dons divinos, como um verdadeiro arrependimento de pecados, e, ao contrário do artificial, um verdadeiro temor de Deus, verdadeira fé, amor sincero. A exaltação, feita por Erasmo, do arbítrio decaído do homem como livre para superar seus próprios pecados e sua escravidão era, na mente de Lutero, uma confrontação à liberdade da graça de Deus e, portanto, um ataque ao próprio evangelho e, por fim, à glória de Deus. Assim, Luterodemonstrou ser um estudante fiel de Paulo e Agostinho até o fim.

John Piper

Fonte:[Josemar Bessa]

A Bíblia é a sua vida – John Piper



Moisés disse em Deuteronômio 32.46-47: "Aplicai o coração a todas as palavras que, hoje, testifico entre vós, para que ordeneis a vossos filhos que cuidem de cumprir todas as palavras desta lei. Porque esta palavra não é para vós outros coisa vã; antes, é a vossa vida". A Palavra de Deus não é algo inútil; é uma questão de vida e morte. Se você trata a Bíblia como uma coisa vã, está desperdiçando vida.

Mesmo a nossa vida física depende da Palavra de Deus, porque fomos criados por sua palavra (SI 33.6; Hb 11.3), e "ele sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder" (Hb 1.3). Nossa vida espiritual começa com a palavra de Deus: "Segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade" (Tg 1.18). "Fostes regenerados [...] mediante a palavra de Deus" (lPe 1.23).

Não apenas começamos a viver pela palavra de Deus, mas também continuamos a viver por ela: "Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Mt 4.4; Dt 8.3). Nossa vida física é criada e mantida pela palavra de Deus, e nossa vida espiritual é avivada e sustentada pela palavra de Deus.

Quantas histórias poderíamos reunir para dar testemunho do poder da Palavra de Deus para dar vida! Veja a história de "Little Bilney", um dos primeiros reformadores da Inglaterra, nascido em 1495. Ele estudou direito e esforçava-se rigorosamente em atividades religiosas. Mas não havia vida interior. Um dia ele recebeu uma tradução latina do Novo Testamento grego de Erasmo. Eis o que aconteceu:

Deparei com essa frase de Paulo (oh, como essa frase trouxe paz e consolo à minha alma!) em ITimóteo 1: "Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal". Essa frase isolada, pela instrução e atuação interna de Deus, que eu não percebi naquele momento, alegrou tanto o meu coração, que antes estava ferido com a culpa dos meus pecados e quase em desespero, que [...] eu, imediatamente, [...] senti um consolo e uma aquietação maravilhosos, tanto que "meus ossos feridos saltaram de alegria". Depois disso as Escrituras começaram a ser mais agradáveis para mim do que o mel ou o favo.

De fato, a Bíblia "não é para vós outros coisa vã; antes, é a vossa vida!" O alicerce de toda alegria é a vida. Nada é mais fundamental que a própria existência — nossa criação e preservação. Tudo isso se deve ao poder da Palavra de Deus. Pelo mesmo poder ele pronunciou-se nas Escrituras em favor da criação e manutenção da nossa vida espiritual. Por isso a Bíblia não é inútil, ela é a sua vida — o combustível da sua alegria!

Duas Espécies de Justiça – Martinho Lutero



“Sermo de duplici iustitia, 1519”


O sermão sobre as duas espécies de justiça é uma amostra das tentativas de Lutero no sentido de comunicar ao povo as verdades redescobertas nas obras do apóstolo Paulo e Santo Agostinho. Não se sabe ao certo quando Lutero proferiu o sermão. O texto da Epístola aos Filipenses 2.5-8 sugere o Domingo de Ramos de 1518 ou 1519. Publicado pela primeira vez em 1519, na casa editora de Johann Grünenberg.

Irmãos, “tenham em vocês o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus”. (Filipenses 2.5s)

A justiça dos cristãos é de duas espécies, como é de duas espécies o pecado dos homens.

A primeira espécie provém de outra pessoa e é concedida de fora. É a justiça mediante a qual Cristo é justo e justifica pela fé, como diz 1 Coríntios 1.30. "...o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção". Ele próprio afirma, em João 11.25: "Eu sou a ressurreição e a vida: quem crê em mim, não morrerá eternamente." E novamente, João 14,6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" Esta justiça, portanto, é concedida aos homens no batismo, e, em toda época de verdadeira penitência, resulta que o ser humano pode gloriar se, com toda confiança, gloriar-se em Cristo e dizer.: É meu tudo o que e de Cristo: sua vitória seus feitos, o que disse e sofreu, sua morte - corno se eu próprio tivesse vencido, feito, dito, sofrido tais coisas e tivesse sido morto. Pertence ao noivo tudo o que a noiva possui, e à noiva pertence tudo o que o noivo possui (pois todas as coisas lhes são comuns visto serem em comum, uma vez que são uma só carne). Assim também Cristo e a igreja constituem um só espírito. Foi assim que o bendito Deus e Pai das misericórdias, conforme São Pedro nos concedeu coisas excelsas e preciosas em Cristo. Da mesma forma, na Segunda Epístola aos Coríntios: “Bendito seja o Deus e Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo pai das misericórdias e Deus de toda consolação” (1.3) “que tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo”. (Efésios 1.3)

Esta bênção indizível foi prometida outrora a Abraão em Gênesis 12.3: "Na tua semente (isto é, em Cristo) serão abençoadas todas as tribos da terra." Em Isaías 9.6: "Um menino nos nasceu, um filho se nos deu." "A nós" diz ele, porque é a nós que pertence todo ele, com todos os seus bens, se nele cremos, como diz aos Romanos no capítulo 8.32: "Não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou; porventura, não nos dará com ele todas as coisas?" São nossas, portanto, todas as coisas que Cristo tem, concedidas que foram gratuitamente a nós homens indignos, por pura misericórdia, quando, na verdade, teríamos merecido ira e condenação, bem como o inferno, Por essa razão também o próprio Cristo, que afirmou ter vindo para cumprir essa vontade santíssima do Pai, tornou-se obediente a ele, e fez em nosso benefício e quis que fosse nosso tudo o que fez, pois declarava: “Eu estou no meio de vocês como alguém que serve” (Lucas 22.27), e novamente: “Este é meu corpo, que é dado por vós” (Lucas 22. 19); e Isaías diz no capítulo 43.24: “Fizeste-me servir em teus pecados, e me deste trabalho em tuas iniqüidades”.

Pela fé em Cristo, portanto, a justiça de Cristo se torna nossa justiça, e, com ela, é nosso tudo que é de Cristo, sim, ele próprio torna-se nosso, Por essa razão, o apóstolo a chama "justiça de Deus", na Epístola aos Romanos 1.17: "A justiça de Deus é revelada no evangelho, como está escrito: o justo vive da fé!" E mais: Refere-se à fé como sendo tal Justiça. Finalmente semelhante fé também é chamada de justiça de Deus, no capítulo terceiro da mesma carta: "Concluímos que o homem é justificado pela fé." (Romanos 3.28). Esta é a justiça infinita e que absorve todos os pecados num instante, pois é impossível que haja pecado em Cristo; antes, quem crê em Cristo, está apegado a ele, e é uma coisa só com Cristo, compartilhando com ele a mesma justiça. Por isso é impossível que nele continue havendo pecado. E essa justiça é a primeira, é o fundamento, causa, origem de toda justiça própria ou de conduta. Porque de fato a mesma é concedida em lugar da justiça original, perdida em Adão, e realiza aquilo, sim, muito mais do que aquela justiça original teria conseguido realizar.

Assim se compreende aquilo no Salmo 31.1: "Em ti, Senhor, me refugio; não seja eu jamais envergonhado: livra-me por tua justiça"; ele não diz “por minha”, mas “por tua”, isto é, pela justiça de Cristo, meu Deus, que foi feita nossa pela fé, pela graça, pela misericórdia de Deus. E isso é chamado, em muitos lugares no saltério, de obra do Senhor, confissão, força de Deus, misericórdia, verdade, justiça. Tudo isso são designações para a fé em Cristo, sim, para a justiça que está em Cristo. Por essa razão o apóstolo ousa dizer em Gálatas 2.20: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”, e em Efésios 3.17: “Que ele vos conceda que Cristo habite pela fé em vossos corações”.

Essa justiça alheia, portanto, infundida em nós sem atos nossos, somente pela graça, ou seja, quando o Pai nos leva interiormente a Cristo, essa justiça alheia é oposta ao pecado original, o qual, de forma semelhante, contraímos de fora por nascença e através de nossa concepção, sem atos nossos. E assim Cristo expulsa o velho Adão dia a dia, mais e mais, e nessa medida crescem aquela fé e conhecimento de Cristo; pois ela não é infundida toda de uma vez, mas começa e progride e é levada finalmente à perfeição com a morte.

A segunda justiça é nossa e própria; não porque nós a operamos sozinhos, mas porque cooperamos com aquela primeira e alheia. Esta é agora aquela boa vivência de boas obras: em primeiro lugar na mortificação da carne e na crucificação da concupiscência em si mesmo, conforme Gálatas 5.24: "Mas os que são de Cristo, crucificaram sua carne, com as paixões e concupiscências." Em segundo lugar também no amor ao próximo; em terceiro, também na humildade e no temor a Deus, do que está repleto o apóstolo e toda a Escritura. Mas ele resume tudo em Tito 2.12 dizendo: “Sobriamente” (isto é, em relação a si mesmo, pela crucificação da carne), “justamente” (ou seja, em relação ao próximo) “e piedosamente” (em relação a Deus) “vivamos neste século”.

Essa segunda justiça é obra da justiça anterior, fruto e conseqüência da mesma, conforme Gálatas 5.22: "Mas o fruto do Espírito (isto é, do homem espiritual, que ele se torna através da fé em Cristo) é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade", etc. Pois o homem espiritual é chamado de "espírito", nessa passagem, porque é evidente que aqueles frutos são obras dos homens. E João 3.6: "0 que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito." Essa justiça leva à perfeição a primeira, porque sempre atua no sentido de arruinar o velho Adão e destruir o corpo do pecado: por isso ela se odeia a si mesma e ama o próximo, não procura o que é seu, mas o que é do outro, e nisto consiste toda a sua atuação. Pois ao odiar a si mesma e não procurar o que é seu, ela efetua em si a crucificação da carne; porém, ao procurar o que é do outro, ela opera a caridade; e, assim, com ambas as coisas ela faz a vontade de Deus, vivendo "sobriamente" em relação a si mesma, "justamente" em relação ao próximo, e "piedosamente" em relação a Deus.

E nisso ela segue o exemplo de Cristo e se identifica com a sua imagem. Pois isto mesmo também Cristo exige: Assim como ele próprio tudo fez em nosso favor, não procurando o que é seu, mas apenas o que é nosso, também nisso obedientíssimo a Deus Pai, assim ele quer que também nós mostremos este exemplo frente aos nossos semelhantes.

Essa justiça é contraposta ao nosso próprio pecado real, conforme Romanos 6.19: "Assim como ofereceram seus membros para a escravidão da impureza, e da maldade para a maldade, assim ofereçam agora seus membros para servirem a justiça para a santificação." (Romanos 6.19). Portanto se levanta pela primeira justiça a voz do noivo que diz à alma: "Eu sou seu", e pela segunda, a voz da noiva, que diz: "Eu sou sua"; está feito então o matrimônio firme, perfeito e consumado, como consta no Cântico dos Cânticos: Meu amado é para mim, e eu para ele, o que quer dizer, "meu amado é meu, e eu sou dele". (Cantares 2.16). Então a alma não procura mais ser justa perante si mesma, mas tem como sua justiça a Cristo; daí ela procura apenas o bem dos outros. Por isso o senhor da sinagoga ameaça através do profeta tirar dela a voz da alegria, a voz do no noivo e a voz da esposa Jeremias 7.34).

Isto é o que diz o tema anteposto: “Tenham em vocês o mesmo sentimento etc” (Filipenses 2.5); isto é, que tenham a mesma atitude e sentimento um para com o outro como vêem que Cristo os teve em relação a vocês. Como isto? "Ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, etc." A forma de Deus não é chamada aqui de essência de Deus, porque desta Cristo nunca se despojou; de igual modo também a "forma de servo" não pode ser chamada de essência humana; e sim, "forma de Deus" é sabedoria, poder, justiça, bondade, e ainda liberdade, assim como Cristo foi um homem livre, forte, sábio, sujeito a ninguém, nem ao vício nem ao pecado, como são todos os seres humanos (pois ele era superior naquelas formas que cabem principalmente a Deus). Mesmo assim ele não se ensoberbeceu desta qualidade, não agradou a si mesmo, tampouco se enfastiou com os outros nem desdenhou os que eram servos e estavam sujeitos a diversos males, como aquele fariseu que disse: "Graças te dou, que não sou como as outras pessoas" (Lucas 18.11), que se alegrava com o fato de os outros serem miseráveis, não querendo de forma alguma que eles fossem semelhantes a ele. Essa é a usurpação que a pessoa se arroga, sim, com a qual ela guarda o que tem e não o atribui exclusivamente a Deus (a quem pertencem esta coisas), nem serve aos outros com as mesmas, para fazer-se igual aos outros. Assim querem ser como Deus, suficientes em si mesmos, autocomplacentes, gloriando-se a si mesmos, sem dever nada a ninguém, etc. Cristo, porém, não teve esta atitude, não é assim que ele foi "sábio", e sim, aquela forma divina ele a atribuiu ao Pai, e se esvaziou a si mesmo, não querendo utilizar aqueles títulos frente a nós, não querendo ser diferente de nós; sim, antes ele se tornou para nós como um de nós e aceitou a forma de servo (isto é, sujeitou-se a todos os males). Mesmo sendo livre, como também diz o apóstolo (1 Coríntios 9.19), se fez servo de todos, não agindo de outra forma senão como se fossem seus todos esses males que eram nossos. Por isso ele tomou sobre si nossos pecados e castigos e agiu de forma tal que os vencesse como que para si mesmo, sendo que na realidade ele os venceu para nós. Com respeito a nós, ele poderia ser nosso Deus e Senhor. Ainda assim não o quis, mas preferiu tornar-se nosso servo, como diz Romanos 15.11,3: "Não devemos agradar a nós mesmos", pois também Cristo não se agradou a si mesmo. Mas, como está escrito, "as injúrias dos que te ultrajam caem sobre mim" (Salmo 69.9), que expressa o mesmo que a sentença acima.

Daí sucede que essa autoridade que muitos entendem como afirmação, deve ser compreendida de forma negativa, ou seja: Cristo não se julgou igual a Deus, isso é, não quis ser igual, como acontece com aqueles que o tomam para si, que dizem a Deus: "Se não deres (como diz Bernardo) a mim a tua glória, eu mesmo dela me apossarei" A frase "não julgou como usurpação o ser igual a Deus" não deve ser entendida como afirmativa no sentido de que ele não julgou ser igual a Deus; isto é: não teria julgado usurpação ser igual a Deus: porque esta sentença não faz sentido adequado, pois fala de Cristo como pessoa humana. O que o apóstolo quer é que cada cristão se torne servo do outro, a exemplo de Cristo. E se alguém possui alguma sabedoria ou justiça ou poder, através do que ele poderia superar os outros e gloriar-se como se fosse deiforme, esse não deve tomar isto como seu, mas atribuí-lo a Deus. De modo geral, deve despir-se dessas qualidades e comportar-se como um daqueles que não as têm, para que cada um, esquecido de si mesmo e despojado dos dons de Deus, aja com seu próximo como se fosse sua própria a fraqueza, o pecado e a ignorância do próximo; não se glorie, nem se ufane, nem desdenhe, nem triunfe contra aquele, como se fosse seu Deus e igual a Deus; uma vez que se deve deixar isso somente para Deus, semelhante soberba leva à "usurpação". Assim, portanto, é compreendida a "forma de servo" e se cumpre aquilo que o apóstolo escreve em Gálatas 5.13: "Sejam servos uns dos outros, pelo amor." E em Romanos 12.4s e 1 Coríntios 12.12ss ele ensina, pela semelhança dos membros do corpo, como os membros fortes, honestos e sãos não se ensoberbecem frente aos fracos, desonestos e doentes, como se dominassem e fossem seus deuses. Ao contrário, eles antes servem àqueles, esquecendo-se de sua honestidade, saúde e força. Pois nenhum membro do corpo se serve a si mesmo nem procura o que é seu, mas o que é do outro, e isso tanto mais, quanto mais fraco, doente e desonesto for aquele. E para falar com as suas palavras, são "solícitos os membros entre si, para que não haja divisão no corpo". Com isso se torna claro agora como se deve agir com o próximo em todas as coisas.

Porque, se não quisermos nos despir voluntariamente dessas "formas de Deus" e vestir as "formas de servo", seremos forçados e despidos contra a vontade. Quanto a isso observe em Lucas 7.36ss a história em que Simão, o leproso, assentado em "forma de Deus" e em justiça (própria,) julgava arrogantemente e olhava com desprezo para Maria Madalena, na qual ele via a "forma de servo". Mas veja: Cristo logo o despiu da forma da justiça e lhe pôs a forma do pecado, dizendo: "Você não me deu o beijo, não ungiu minha cabeça." Repare quão grande eram os pecados que ele não enxergava! Tampouco se julgava ele deformado por uma forma repugnante. Não há qualquer lembrança de boas obras suas. Cristo ignora a "forma de Deus" na qual aquele se agradava a si mesmo e se ensoberbecia, nada menciona de que tivesse sido por ele convidado, recebido à mesa ou honrado: Simão, o leproso, nada mais é do que um pecador, que tão justo se parecia a si mesmo. Tirou-se-lhe a glória da "forma de Deus", deixando-o envergonhado na forma de servo, querendo ou não. Em contraposição, a Maria ele honra com a "forma de Deus", sobrepõe-lhe a sua e a eleva acima de Simão, dizendo: Esta ungiu meus pés, beijou-os, regou-os com lágrimas e os enxugou com os cabelos. Veja quanto mérito, que nem ela mesma nem Simão enxergavam! Não há qualquer lembrança dos seus deméritos, Cristo ignora a "forma de servidão" nela, a qual ele engrandeceu com a forma de senhorio, e Maria nada menos é do que justa, exaltada na glória da forma de Deus, etc.

Assim ele fará com todos nós, sempre que nos inflarmos por causa da (nossa) justiça, sabedoria ou força, e nos irritarmos contra injustos, tolos e os mais fracos que nos: pois então (esta é a maior perversão) a justiça opera contra a justiça, a sabedoria contra a sabedoria, a força contra a força. Porque você é forte não para fazer os fracos ainda mais fracos, pela opressão, mas para que os torne fortes, exaltando e defendendo-os. E é sábio não para rir dos tolos e assim fazê-los ainda mais tolos, mas para aceitar, como quer que aconteça em relação a você mesmo, e para os ensinar. Assim você é justo, para que justifique e desculpe o injusto, não para condená-lo apenas, falar mal dele, julgar e castigá-lo. Pois este é o exemplo de Cristo para nós, conforme ele diz: “O Filho do homem não veio para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo através dele” (João 3.17); e novamente em Lucas 9.55ss: “Não sabem de que espírito são? O Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las”. Mas a natureza resiste violentamente, porque ela muito se deleita com a vingança e a glória de sua justiça e com a vergonha da injustiça do seu próximo. Por isso promove apenas sua própria causa e se alegra de estar ela melhor que a do próximo, acossando, porém, a causa do próximo e desejando que ela vá mal. Essa perversão é toda a injustiça, contrária ao amor que não procura o que é seu, mas o que é do outro. Portanto deve-se lamentar que a causa do próximo não esteja melhor que a própria, e desejar que ela vá melhor que a própria, sem que a alegria seja menor que sobre a própria causa: pois essa é a lei e os profetas.

Vocês dizem: “Acaso não é permitido castigar os maus? Não convém punir os pecados? Quem não tem a obrigação de defender a justiça? Pois isso seria dar oportunidade à transgressão”.

Respondo eu: “Aqui não se pode dar uma resposta simples: é preciso fazer uma distinção entre as pessoas: ou são homens públicos ou pessoas particulares”.


Aos homens públicos, isto é, os que estão a serviço de Deus ou ocupam posição de direção, não se referem essas coisas que foram ditas: pois a esses Cabe punir e julgar os maus ex officio e por necessidade, vingar e defender os oprimidos. Por que não são eles mesmos, mas quem o faz é Deus, cujos servos eles são nisto, como o apóstolo expõe largamente em Romanos 13.4, dizendo: "Não é sem motivo que (a autoridade) traz a espada", etc. Isto, entretanto, deve ser entendido com referência aos assuntos dos outros, e não dos próprios. Pois ninguém está encarregado por Deus por causa de si mesmo ou de seu próprio interesse, mas por causa dos outros. Se, porém, alguém tem uma causa própria, deve requerer outro representante de Deus que não ele mesmo; porque ele já não é mais juiz, mas litigante. Mas sobre esses fatos uns dizem uma coisa, outros outra; o assunto é amplo demais para ser discutido agora.

Pessoas privadas e em causa própria há três tipos: os primeiros são os que querem vingança e procuram julgamento junto aos representantes de Deus, e desses há agora um grande número. Isto o apóstolo o tolera, mas não aprova, conforme 1 Coríntios 6.12: "Tudo me é permitido, mas nem tudo convém;" sim, ele até diz ali mesmo: "Em princípio já é uma falha entre vocês o fato de terem demandas," (1 Coríntios 6.7). Mas ainda assim, por causa do mal maior, é tolerado este mal menor, para que não se vinguem a si mesmos e um não use da violência contra o outro, retribuindo o mal com o mal ou reclamando seus bens. Contudo esses não entrarão no reino dos céus, a não ser que mudem para melhor e deixem do que é permitido para seguir o que convém. Porque precisa ser extinta essa atitude de procurar a vantagem própria.

Os outros são aqueles que não procuram vingança, os que estão dispostos inclusive (segundo o evangelho) a dar ao que lhes tira o manto, também a túnica, sem resistir a maldade alguma. Estes são filhos de Deus, irmãos de Cristo, herdeiros dos bens futuros. Por isso eles são chamados nas Escrituras de órfãos, pupilos, viúvas e pobres, de quem Deus quer ser chamado de Pai e Juiz (Salmo 68.5); porque não se vingam a si mesmos. Sim, se os regentes querem vingar em seu favor, eles ou não o desejam e procuram, ou apenas o permitem; ou, se forem de grande perfeição, o proíbem e impedem, dispostos antes a perder também outras coisas por causa disso.

Se você disser: "Esses são pouquíssimos, e quem pode ficar neste mundo, agindo assim?", respondo: Não é nenhuma novidade hoje que poucos são salvos, e que é estreita a porta que leva para a vida, e que poucos a encontram. E se ninguém o fizer, como ficará a Escritura que declara serem os pobres, órfãos e pupilos e povo de Cristo? Por isso esses se afligem mais do pecado dos que os ofendem do que por causa do próprio dano e ofensa. E preferem agir de modo a chamar aqueles de volta do pecado a vingar as injúrias. Por essa razão despem-se das formas de sua justiça e vestem as formas daqueles, orando pelos que os perseguem, falando bem dos que falam mal, fazendo o bem aos que lhes fazem injustiça, estando prontos a sofrer e satisfazer os castigos em favor dos seus próprios inimigos, (Mateus 5.44) para que sejam salvos. Esse é o evangelho e exemplo de Cristo.

Os terceiros são aqueles que, na atitude, são corno os segundos, já mencionados, mas no efeito são diferentes, São os que não reclamam de volta o que é seu nem desejam punição por procurarem o que é seu; eles, isto sim, através dessa punição e restituição do que é seu procuram a melhora daquele que roubou ou ofendeu e que, segundo vêem, não pode ser consertado sem punição. Esses são chamados de zelosos e recebem louvor nas Escrituras. Mas isso não deve tentar senão quem é perfeito e muitíssimo exercitado no segundo grau já falado, para que ele não tome a fúria por zelo e não venha a ser convencido de que aquilo que ele crê fazer por amor à justiça, ele o tenha feito antes por indignação e impaciência. Porque a ira muito se assemelha ao zelo, e a impaciência ao amor da justiça, de sorte que não podem ser satisfatoriamente distinguidos, senão por pessoas muitíssimo espirituais. Ato desta espécie fez Cristo (conforme está dito em Jo 2.14ss), quando, tendo feito açoites, expulsou vendedores e compradores do templo, bem como Paulo, quando disse: "Com a vara irei até vocês", etc. (1 Coríntios 4.21).